Machado de Assis: A Inspiração por Trás dos Versos de David Lehman
Como Machado de Assis influenciou cinco poemas de David Lehman, publicados na revista The New Yorker.
Vi nas redes sociais a matéria do jornalista Jorge Pontual sobre como David Lehman, poeta e crítico literário americano, se inspirou em Machado de Assis para compor os cinco poemas de In Praise of Machado de Assis (Elogio a Machado de Assis). Li os poemas na edição de 25 de novembro da The New Yorker (sim, com data "no futuro") e escrevi esta breve análise das nuances e intertextualidades dos versos de Lehman, que evidenciam a relevância universal do estilo machadiano.
UMA HOMENAGEM AO ESTILO MACHADIANO
Lehman, nos cinco poemas, capta a essência do estilo machadiano com um tom irônico, filosófico e profundamente literário. Cada poema evoca características fundamentais da obra de Machado, como a fragmentação narrativa, o ceticismo filosófico e a ironia mordaz. Lehman também entrelaça referências a filósofos (como Pascal), à música (Francis Poulenc) e à literatura global (Stendhal e Aristóteles), inscrevendo Machado em um contexto universal.
No poema “Couple of Drunks”1, Lehman descreve a narrativa machadiana como “um casal de bêbados”, que cambaleia, ri de piadas sem graça e levanta os punhos em movimentos erráticos. Essa metáfora não apenas ilustra o caráter digressivo e imprevisível da prosa de Machado, mas também conecta-se a uma crítica histórica feita por Sílvio Romero (1851-1914) que, de forma pejorativa, chamou o estilo machadiano de “gago”, referindo-se à gagueira do autor e extrapolando essa característica física para descrever sua forma de escrita.
Entretanto, o que Romero enxergava como limitação, Lehman celebra como virtude. O “estilo gago” ou “estilo bêbado” de Machado reflete uma narrativa fragmentada e deliberadamente não linear, que desconstrói as convenções do realismo e explora, com sofisticação, os dilemas humanos. A aparente irregularidade estilística é, na verdade, uma escolha consciente que desafia o leitor e promove uma leitura mais ativa, na qual humor, melancolia e metalinguagem se entrelaçam.
BREVE ANÁLISE DE CADA POEMA
1. THE INTERRUPTION
Lehman abre a série de poemas destacando o caráter fragmentado e imprevisível da narrativa machadiana. A ideia de capítulos curtos com títulos como “God Knows What He’s Doing”2 reflete o estilo de Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que o narrador manipula o tempo e o foco narrativo com total liberdade. A linha “I shall write it with the fountain pen of mirth and the ink of melancholy”3 evoca a dualidade fundamental de Machado, que equilibra o humor corrosivo com uma visão melancólica da condição humana.
Intertextualidades:
Machado dialoga com Sterne em Tristram Shandy na estrutura digressiva e na ironia metalinguística.
A referência ao “salt of mystery and the pepper of danger”4 remete ao tom filosófico-existencial do autor.
2. A THINKING ERRATUM
Neste poema, Lehman rejeita Pascal ao reinterpretar o ser humano como uma “errata pensante” (leia no capítulo 27 das Memórias Póstumas) em vez de um “junco pensante”. A comparação entre a mente humana e um “Poulenc piano piece without key signatures”5 ressalta a ideia de imprevisibilidade, algo central em Machado. Assim como Poulenc desconstrói as convenções musicais, Machado subverte o realismo com sua ironia, digressões e narradores pouco confiáveis.
Intertextualidades:
A subversão de Pascal reflete o ceticismo de Memórias Póstumas e Quincas Borba.
A noção de “nunca haverá uma versão definitiva” (último verso do poema) ecoa o próprio Machado, cuja obra resiste à interpretação única.
Um comentário: talvez, haja sim uma “edição definitiva”: aquela que “o editor dá de graça aos vermes”, como o próprio Machado concluiu no capítulo 27 das Memórias Póstumas.
3. BECAUSE OF THE ERROR
Lehman explora o relacionamento obsessivo entre leitores e críticos com a obra de Machado. A frase “searching in vain for that error” destaca como O Alienista e Dom Casmurro provocam múltiplas interpretações, especialmente no caso de Capitu, cuja suposta traição permanece um mistério eterno. A ideia de deletar um capítulo devido a um erro oculto brinca com a tendência machadiana de expor os equívocos e fraquezas humanas.
Intertextualidades:
A obsessão por um "erro" reflete o dilema de Bentinho em Dom Casmurro, preso à dúvida sobre Capitu.
A desconstrução do “capítulo perfeito” remete à metalinguagem presente em Machado, especialmente em Memórias Póstumas.
4. COUPLE OF DRUNKS
Este poema captura a essência do “estilo bêbado” de Machado, caracterizado por uma narrativa não linear e cheia de digressões. Lehman compara a prosa de Machado a um casal de bêbados, em um movimento imprevisível que reflete a rejeição do autor às convenções narrativas realistas. A frase “Better to fall out of a cloud than from a third-story window” ilustra a mistura de tragédia e humor típica de Machado.
Intertextualidades:
A crítica de Sílvio Romero ao “estilo gago” é reinterpretada aqui como um elogio.
A referência ao “espelho caminhando pela estrada” conecta-se à definição de Stendhal sobre o romance (em O Vermelho e o Negro), mas Machado subverte esse conceito ao colocar um “espelho quebrado”.
5. THE UNION OF HUMAN FOLLY
Lehman conclui com uma visão aristotélica (e também newtoniana) revisada por Machado, na qual a colisão entre bolas de bilhar simboliza as interações humanas e suas inevitáveis falhas. A frase “extremes of reality and theory may link or collide” reflete o determinismo cômico de Quincas Borba, em que ações triviais resultam em consequências grandiosas.
Intertextualidades:
Aristóteles é revisitado com um toque machadiano, enfatizando a imprevisibilidade da vida.
A filosofia de “Ao vencedor, as batatas” é evocada na dinâmica entre teoria e realidade.
CONCLUSÃO
David Lehman presta uma homenagem sofisticada a Machado de Assis, reinterpretando sua obra à luz de tradições literárias e filosóficas globais. Os poemas exploram a ironia, o ceticismo e a digressividade que tornam Machado um autor singular. Sua descrição da prosa machadiana como “bêbada” ressignifica uma crítica histórica, transformando-a em celebração de um estilo único.
Casal de Bêbados.
"Deus Sabe o Que Está Fazendo".
"Eu o escreverei com a caneta-tinteiro da alegria e a tinta da melancolia".
"O sal do mistério e a pimenta do perigo"
"Peça de piano de Poulenc sem assinaturas de clave".